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Nas lojas, figuras que sobreviveram da época da guavira até o zap zap

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(Foto: Divulgação)
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(Foto: Divulgação)
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(Foto: Divulgação)
A antiga rua Y-Juca Pirama, a praça da Cabeça de Boi, os guavirais, o ponto de encontro de amigos na Barão do Rio Branco, o movimento frenético da rua 14 de Jullho, por conta da extinta estrada de ferro Noroeste do Brasil. Cenários de um estilo de vida que hoje se abriga na memória de pessoas daqui e vindas de outras regiões, que dedicam décadas ao comércio de Campo Grande. Quando a cidade completa 116 anos, queremos saber o que mais deixou saudade no peito desses que ainda estão no mesmo lugar, vendo o tempo passar e a rua se transformar, dia após dia, atrás do balcão.Algumas lembranças estão logo ali na vitrine, outras já na gaveta e algumas encontramos somente na fala de quem tem 50 anos de comércio, como o seu Torres, de 79 anos. Ele prefere se identificar assim e gosta de resumir ao máximo a história de trabalho, que, certamente, não foi fácil. Tanto esforço, fez o comerciante perder o entusiasmo e ele não quer nem sair na foto, mas conta sua jornada que começou no Ceará, após dois anos de seca, que judiou a família no sertão nordestino.Da cidade ele não reclama, mas muda até de humor quando fala dos governantes. “A cidade sempre foi boa, continuou os bons tempos até na ditadura. Agora que está ruim com esses políticos. As pessoas estão todas endividadas, tem que ser bem pé no chão para viver”, diz, ali naquela loja enorme, em que custa aparecer cliente.Esse cearense, que chegou em Campo Grande com 17 anos, em 1953, é o dono de uma das intermináveis lojas de móveis novos e usados da Rua Marechal Cândido Mariano Rondon que, desde 1909, tem esse nome, mas está na memória dos pioneiros como Rua Y-Juca Pirama. O primeiro, um mato-grossense que atuou na implantação das linhas telegráficas no Estado e o segundo, o major aviador Y-Juca Pirama de Almeida, militar da Força Aérea Brasileira, morto em acidente de avião.Do telégrafo ao WhatsApp – Isso mesmo, telégrafo. Quem nasceu há uma década nem sabe o que é isso, palavra que resiste na fachada do Correios, na Avenida Calógeras. O mérito de quem apostou nas linhas telegráficas vai caindo no esquecimento, enquanto até os mais velhos de idade já se habituaram com os novos aplicativos de celular. Mas o que isso tem a ver como as ruas do comércio? É que o WhatsApp, também chamado de “Zap Zap” mudou até o estilo de vida do cliente, do vizinho de loja e de qualquer um que passa pela rua sem tempo “a perder”.Onde já foi loja do Baú da Felicidade, que ofertava prêmios do extinto programa do Silvio Santos, agora trabalha um amante da máquina de datilografia. Romildo Souza Medeiros, de 59 anos, há 29 anos toca a Consertec no local, mas há 36 anos tem a loja, que antes ocupou a sala de um prédio na Rua 14 de Julho. Se alguém pergunta do que ele sente falta na cidade, ele não hesita ao responder:“Antigamente, nos finais de semana tinha roda de companheiros na rua Barão do Rio Branco, na 14 de Julho com Afonso Pena, com Dom Aquino. Hoje, não tem mais isso, o comércio foi aumentando e isso foi acabando. Já não tem mais essa cultura, nessas áreas de lazer”, lamenta e lamenta mesmo, porque ele é daqueles que quer manter vivo, nem que nos pequenos detalhes, o estilo de vida de quem viu as comitivas boiadeiras, que fizeram a Praça das Araras, ser conhecida, por muito tempo, como Cabeça de Boi. Tem até um monumento no lugar, um pouco acima da loja do Romildo, para lembrar a carcaça de cabeça de boi pendurada ali, na década de 60.Para não perder completamente o gostinho do tempo antigo, o comerciante recebe a gente com um sorriso, pergunta “bom dia?” como quem realmente quer saber a resposta e oferece um calendário daqueles pequenininhos, que cabem no bolso e nos lembram a infância. Se o cliente tem mais tempo, ganha um calendário grande, coisa que já não se acha em qualquer lugar, ainda mais no mês de julho.“Tenho saudades da forma como as pessoas viviam, da tranquilidade. Hoje, é uma correria muito grande, obviamente, isso é por causa do progresso. Eu busco coisas antigas. É uma pena o zap zap. Isso é uma doença. Os jovens perderam aquele bate-papo gostoso do dia a dia. Mas ainda roubo dos clientes um tempo de bate-papo, principalmente das pessoas aposentadas que sempre querem uma prosinha”, diz, ao entregar o produto reparado a uma das “clientes ligeiras”, que, desta vez, pagou pelo conserto de um ferro de passar e uma sanduicheira.Lá na Avenida Júlio de Castilhos, na sobre-esquina com a Travessa Luz, o barbeiro Ademilson Claudino das Virgens, 76 anos, também põe metade da culpa no aplicativo e fala zap zap, como quem recusa até o estrangeirismo embutido em mais um aparelho da globalização. Há 41 anos, ele faz cabelo e barba na Vila Sobrinho.Veio da Paraíba, em 1941, com dois anos de idade. Ele que nos lembra que a cidade não foi construída só por forasteiros, mas também gente daqui. “Quando eu comecei a trabalhar, vinha um índio terena aqui. Ele falava Campo Grande tem um sistema, é de índio e fazendeiro”, resume. Além desses, que até hoje brigam pela terra, tinha muita guavira, mamona e caraguatá, no entorno da barbearia que tem apenas 13 m².“Aqui só tinha colonião e o poste de luz era de aroeira. O pessoal reclama de tudo, reclama de ônibus. Para mim está tudo melhorando. Antes a vida era mais difícil. A única coisa ruim é a idade da gente, eu trocaria a idade, o resto está bom”, brinca Ademilson, que faz aniversário junto com a cidade, no dia 26 de agosto.Ele diz que a clientela está morrendo. “Ficaram velhos igual eu. A turma que vinha aqui na década de 70, agora está com 90 anos”, diz o barbeiro, como se o tempo tivesse passado rápido demais, naquela parte da cidade. Os clientes vêm só em começo de mês, depois disso a companhia são o cigarro e algum “vagabundo para bater-papo. São os maiores abandonados”, nas palavras do barbeiro. Dos clientes antigos, Ademilson conta que muitos reclamam das transformações no ritmo da cidade. Com alguns, o neto não tem tempo para conversar, porque está conectado. “Na casa nem a empregada, nem o cachorro não respeita ele. No ônibus, está todo mundo com ouvido tapado e o zap zap. Esse é que é o problema”, diz. Ele fala do ônibus, porque é de volta para casa, no Santa Luzia, que, raramente, arranja alguém para conversar fiado. “Esses aí, quando encontra alguém que não tá na internet, aí quer falar demais”.Na gaveta – No Centro, onde parece que a maioria já se conformou com a vida cada vez mais agitada, as lembranças estão na gaveta e, claro na memória, de quem é mais saudoso. As cadeiras para corte de cabelo são os únicos artigos que, se pudessem, contariam a história certinha do Salão Azul, na Rua Marechal Cândido Mariano Rondon. Com quatro donos ao longo de quase seis décadas, ninguém sabe dizer ao certo a idade do estabelecimento.“O primeiro foi um campo-grandense; depois teve um nordestino, o terceiro, um oftalmologista e o atual, esse “japonês”, da área de eletrônica. Não mudou muito, somos nós que damos o norte, conforme muda os donos. Somos uma equipe conservadora. Temos muito clientes antigos”, conta o funcionário Teodoro Romero Benitt, 77 anos, fazendo referência ao dono do estabelecimento, Nilo Taira, que não meche com cabelo, comprou o ponto apenas como investimento.Teodoro já teve salão, mas prefere ser funcionário, por conta dos impostos abusivos. Com a cabeça mais fria, ele oferece pirulito, balinha e garante que tem diálogo com o cliente, coisa escassa no comércio. Lá no fundo do salão, nas gavetas da cabeleireira e esteticista Terezinha Gonçalves da Silva, de 52 anos, mais um pouco de lembranças.No salão há 20 anos, ela trabalha das 6h40 até as 21h e mesmo quando sai mais tarde, mantém o bom humor. O que marcou os tempos que deixaram saudade no salão? Para Terezinha, a vinda de cantores e atores famosos. Do armário, ela tira as fotos com Agnaldo Rayol, Moacir Franco, Pena Branca e Xavantinho, João Paulo, Elizabeth Savalla, Netinho, Zé Rico e, o que mais gostou de conhecer, o ator Paulo Goulart. “Aqui continua tudo igual, não muda muito. Eu não tenho tempo para ficar parada”, diz ela, deixando a conversa para atender o próximo cliente, um desses que corta cabelo lá há décadas.