Dona Nircia nasceu em Olinda, lá pelas bandas de Recife. Com 17 anos, foi para São Paulo e, depois que o pai morreu num acidente, se mudou para o Rio de Janeiro, junto da mãe e de um irmão. Lá se casou, teve três filhos e juntou as malas quando o neto nasceu, vindo para Rio Verde, já em Mato Grosso do Sul. Nordestina, era mulher forte de sangue e de nascença. A começar pelo contexto em que viveu e como escolheu passar por ele. Viu duas grandes guerras acontecerem. Perdeu pai, marido, mãe, dois filhos e se perdeu também nas lembranças do grande amor. Aquele pelo qual ela viveu um romance escondido durante 18 anos.Protagonista de uma história incrível, as herdeiras da força dela é quem contam ao Lado B. “Histórias da minha vó” é um novo capítulo que começamos aqui, por acreditar que o que foi vivido pelas gerações passadas, é o que nos forma hoje.“A história é muito simples...” começa a bancária, Dayse de Araújo Raphael, de 54 anos, ao lado da filha, a dentista Adriana Raphael Magalhães, de 27. “Ela teve uma vida com histórias duras e por conta disso, ela aproveitava muito as experiências boas que a vida oferecia. Então você começa a ver a visão de mundo que a pessoa tem”, descreve a filha.Dona Nircia escolheu valorizar o bem que lhe chegou ao invés de olhar primeiro o ruim. E embora a vida tivesse sido assim, ela não deixou de se divertir ao longo dos 97 anos vividos. E melhor que uma adolescente, soube namorar escondido no quintal de casa, em Rio Verde, durante quase duas décadas.“Ela conheceu um senhor e ninguém sabia no começo... Eles começaram a namorar, minha mãe com bastante restrição, porque meu irmão jamais aceitaria. Ele que ficou tomando conta da gente”, justifica Dayse. Embora fosse o irmão mais novo dos homens, era ele quem se sentia responsável pela família. Mesmo com dona Nircia já na casa dos 70 anos. E a avó era “terrível” nas artes. A casa onde morava sozinha tinha vários cadeados para evitar de entrar ladrão, quando na verdade era do filho que a senhorinha fugia. “O dia que esse senhor ia lá, ela trocava os cadeados da frente, se meu irmão chegasse e fosse abrir: ‘estava com defeito’. Era essa a desculpa dela”, lembra Dayse aos risos. A filha já morava em Campo Grande.E foi assim durante 18 anos, até a morte do filho. A família toda sabia, mas se nem ele – que não aceitaria – fingia não ver, ninguém nunca se manifestou. Passados 10 dias depois da morte desse filho, que vivia na mesma cidade, ela resolveu trazer o namorado para morar consigo. Por serem de famílias diferentes, Dayse e Adriana preferem não revelar o nome do grande amor de Nircia. Mas a história corre a cidade toda.“Pra mim, estava ótimo, eu acho que tem que ter uma companhia. É muito justo e ele era uma pessoa desimpedida”. Este foi o sentimento da filha à época. “E quando a gente achava que estava tudo certo, inclusive fomos visita-los, ela mandou a notícia quando a gente já estava aqui: que tinha mandado ele embora com mala, bolsa e tudo”, narra a filha.Sem reação, filha e neta perguntaram à dona Nircia e ouviram que a convivência não estava fácil. “Chega de manhã e ele quer comer ovo mexido, leite com nata... E ela falava que não entendia aquilo”, reproduz Dayse. Daqui, a filha chegou a pedir para a mãe manter o costume dela no café e deixar o namorado com as coisas dele. “Imagina, não!” foi a resposta de Nircia.Não foram nem dois meses sob o mesmo teto, para eles voltarem a namorar escondido no jardim. Como os dois eram já de idade, a empregada dele quem levava o senhorzinho até o quintal de Nircia. E assim, voltaram ao velho hábito. Mas para a família daqui, Nircia garante que eles eram só amigos. “Acho que ela ficou muito impressionada com a rotina dele”, acredita a neta Adriana. Em resumo, o choque cultural da realidade de cada um bateu forte nela. Embora tivesse amado o mesmo homem por tantos anos, Nircia tinha muita dificuldade em lidar com o real.“O que eu observei: quando você se afasta do objeto para observar, vê uma relação idealizada. Você tem o objeto que você ama e quer bem. Então você faz uma ideia daquele amor e quando vai para o mundo real, aquele amor tem seus defeitos e qualidades e isso foi muito difícil”, avalia a filha. Na opinião de Dayse, o que atrapalhou a mãe a realizar o ideal foi adaptá-lo para a realidade.“Mas desde que a gente se mudou e ela foi morar lá, o que ela falava de pessoa bonita, era ele, era muito interessante e isso foi até o fim”, contam filha e neta.A família daqui pelejava para que dona Nircia viesse morar em Campo Grande. Mas a Capital para ela era só para fazer as tarefas, de ir ao médico, por exemplo. “Era mais tranquilo para eu cuidar dela aqui, mas ela não aceitava de jeito nenhum. Vinha e voltava”, relembra a filha.E o que a trouxe de volta foi o desfecho inesperado de sua história de amor: quando o senhor por quem ela se apaixonou, parou de reconhece-la. “Ele adoeceu de algumas coisas, não vou saber dizer o que foi e num belo dia, a empregada dela a levou para visita-lo. Ela ia de bracinho dado, chegou até lá e ele perguntou quem ela era. Aí para ela foi a morte”, recorda Dayse.Naquele momento em que ver diante de si um amor sem o conteúdo pelo qual dona Nircia se apaixonou, doeu e muito. “Ela ainda o visitou mais duas vezes e falou que não suportava mais estar diante do ser amado e aquele ser não refletir o sentimento que ela imaginava que fosse...”Em Campo Grande, dona Nircia viveu mais um ano e meio e chegou até a fazer festa de 95 anos, com grupo de samba, mais de 100l de chopp e bolo decorado de oncinha.“Se ela sentia falta? Sentia... Contava as histórias que vinham do mundo das ideias e das lembranças. Ela misturava entre o real e o não real. Não era uma coisa fácil para ela lidar, até pela idade”, enxergava a filha.Um dia antes de partir, em novembro do ano passado, dona Nircia sentiu falta de ar e chamou a filha e os netos para começar a se despedir. No dia seguinte, passou a questionar quem ela encontraria quando partisse. E na madrugada, se foi.“Mas ela soube aproveitar as coisas boas da vida. Diante de todas as dificuldades, aproveitar tudo de bom que a vida oferece”, aprendeu Dayse. “E a encarar, ô mulher que era guerreira, não tinha nada que ela falasse ‘não sei’ ou que deixasse baixar a bola”, completa a neta.Dona Nircia também via amor em tudo e achava incrível quando percebia qualquer possibilidade de romance. “Ela sempre via e falava: mas aquele rapaz está interessado. E se a gente dissesse: mas é amigo de trabalho, ela respondia: minha filha, você não sabe de nada”, brinca Dayse.Até os 97 anos, a avó tinha como pessoa bonita, o amor de Rio Verde. “E esse senhor até hoje está vivo e ele não tem reconhecimento das pessoas, mas tem uma bonequinha que é lourinha e que fica no colo dele e ele carinha aquela boneca. E ela (dona Nircia) era loura, sempre foi loura. Você que veio saber sobre uma história de amor e conheceu a história de uma guerreira amorosa.Provavelmente a maior lição de todas é que o amor é sempre bem vindo. A qualquer tempo. A qualquer hora”, encerra a filha.