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Índios ignoram olhares desconfiados na universidade para ajudar aldeias

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(Foto: Divulgação)
Quando universidades de Mato Grosso do Sul formaram os primeiros indígenas, a partir de 2011, estavam fazendo parte de um processo movido pela vontade das comunidades de ter professores índios e não somente brancos nas escolas. Eles pensavam que isso mudaria muita coisa e mudou mesmo.Hoje, os educadores nativos são maioria nas escolas das aldeias e levam experiências, que abrem um caminho cada vez mais amplo para os mais de 800 jovens interessados em bacharelado nas áreas desaúde, exatas, tecnologia, sociais e humanas. Além disso, a graduação é só o começo de uma jornada, que inclui pesquisas de mestrado e doutorado, sempre voltadas para as comunidades.Cursando o 5º semestre de Ciências Contábeis, o terena Jucinei Fernandes, de 22 anos, lembra a importância das aulas do Éder Alcântara, um dos primeiros professores terena da comunidade, formado em História pela UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), em 2007. “Ele falava muito sobre as questões atuais da luta pelos direitos, o que levava a gente a pensar sobre assuntos como a PEC 215, que pode impedir a demarcação de terras”, conta Jucinei, que escolheu a graduação para atuar em prol da causa.“Faltam índios formados na área para trabalhar em organizações que defendem os direitos dos povos indígenas. A escolha do curso foi mais pelo movimento, que busca uma educação diferenciada e saúde de qualidade”. Apesar de falar de biológicas e humanas, Jucinei garante que só gosta de números e por meio deles quer mudar a realidade das aldeias. “A saúde é por onde tudo começa. Sem isso, não se pode lutar pela questão fundiária”, destaca.Os professores que desbravaram a universidade hoje são referência para os jovens que também pensam o curso muito além da realização pessoal. “Além da bancada ruralista, que quer exterminar os índios, tem alguns evangélicos, que ao falar rasgam os direitos indígenas e o setor industrial, pois eles veem a terra como fonte de riqueza e para nós é fonte de vida. Hoje a sociedade dá mais valor no dinheiro, que não vale nada”, comenta Jucinei.Preocupada com a saúde na comunidade onde nasceu Débora Marques, de 17 anos, escolheu o curso de Farmácia. Ela saiu da aldeia Cachoeirinha, em Miranda, há doze anos, para morar em Campo Grande, mas esse tempo todo só fez crescer a vontade de voltar para a comunidade assim que terminar o curso na UCBD. Como vai ser esse retorno? Débora resume: “um desafio”. “Lá falta remédio para as pessoas, falta fiscalização na saúde e eu quero trabalhar nisso”, diz.A universitária Milena Moreira, de 18 anos, preferiu ficar na aldeia Moreira, em Miranda, quando os pais mudaram para a Capital, há três anos. Ela queria aproveitar o tempo lá antes de ingressar na universidade. Agora, já no 1º semestre de Nutrição na UCDB, a terena continua com o pensamento na comunidade.“Desde criança, eu via a realidade da minha família e da aldeia, onde tem muitas pessoas com diabetes e crianças com anemia. Só tem um nutricionista, que atende no posto apenas duas vezes por semana e muitos acabam ficando se se consultar, principalmente os idosos”, comenta, ao lembrar ainda o índice de diabetes, que é maior na aldeia Moreira, em relação as demais da região, segundo a tia de Milena, uma agente de saúde.Enquanto os mais novos vivenciam as dificuldades e conquistas na graduação com o sonho de voltar para aldeia, outros já conciliam a prática profissional nas comunidades, dando continuidade aos estudos. É o caso do professor que serviu de exemplo para Jucinei. Éder cursou mestrado em História, na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e atua como vereador em Dois Irmãos do Buriti.No meio da trajetória, o sentimento de ajudar se apoia na unidade das etnias, como forma de fortalecer ainda mais cada uma das comunidades. A enfermeira Zuleica Thiago, de 25 anos, nasceu na aldeia Água Branca, no distrito de Taunay, em Aquidauana; se formou na UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e atuou em uma unidade de saúde entre os Guarani Kaiowá. Agora, ela faz mestrado profissional em Saúde da Família, na UFMS e mora na aldeia de origem.“Meu projeto tem que ter uma contribuição para as famílias. Na verdade, queria Medicina, mas não tinha como, então escolhi enfermagem pela função de cuidar do próximo. Com o mestrado posso fazer mais pelos vínculos nas instituições e projetos de pesquisa, que posso levar à comunidade”, comenta a terena, interessada em diminuir os índices de ocorrência de sífilis e HIV (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), entre os Kaiowá.Olhares – Outro aspecto marcante na trajetória acadêmica são as vivências nas salas e corredores das universidades. No caso dos indígenas, elas são temperadas com “olhares diferentes”, nas palavras de Milena. “Na sala eu sinto receio dos colegas, olhares diferentes, principalmente, quando a gente chega com um colar ou um brinco”.O colar que a aluna usa chama atenção pelos detalhes típicos dos trabalhos artesanais, mas o olhar não é de admiração ou curiosidade e sim de preconceito, garante Milena. “É só um olhar mesmo”, enfatiza, ao lembrar que o estranhamento vem de uma minoria. Alguns colegas querem mais aproveitar a oportunidade de conhecer a cultura terena. “Alguns querem conhecer a aldeia”, conta.Tereza Alves, de 26 anos, que cursa o 7º semestre de Enfermagem na UCDB, não passou por momentos desagradáveis, gerados pelo preconceito. Nascida na aldeia Córrego do Meio, em Sidrolândia, também quer garantir que a saúde de qualidade chegue à comunidade. Ela acorda as 4h30 e segue de ônibus para a universidade em Campo Grande. “É puxado, mas vale a pena, diz. Tereza tem amigas, no entanto, que relatam ofensas por parte de colegas, como ocorreu com Débora, que prefere nem revelar detalhes. “No começo, todo mundo sofre discriminação, porque as pessoas falam coisa que não se deve falar. Teve uma vez que eu passei por uma situação dessas, mas é algo que eu prefiro não lembrar”.Jucinei acredita que quem faz cursos com maior número de alunos de classe média e alta sofre mais discriminação. “Nunca tive problemas desse tipo, mas sei que em outras áreas tem esse preconceito. Às vezes, as pessoas nem percebem, porque é um simples olhar diferente”.Com tantos jovens cheios de planos para médio e longo prazo, que ignoram os olhares discriminatórios, as universidades foram se adaptando para atender essas demandas. Hoje, as instituições não se limitam a discutir cotas, mas sim a permanência dos índios nos cursos. Eles contam com um projeto, que tem ações de apoio na UCDB, UFMS, UFGD e UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul).O projeto Rede de Saberes esteve presente na trajetória de Zuleica, mas no curso nem todos os professores tinham em mente o significado de um índio na sala de aula. “A instituição teve um pouco de resistência, quando os indígenas entraram, mas isso mudou muito. Alguns professores pensavam que a gente não ia conseguir terminar. Eles ficavam surpresos com quem era de nota boa e não tinha nenhum exame para fazer”, lembra.